O trabalho de HElena Valsecchi (Novara, 1976)1 inscreve-se numa reflexão estética e espiritual em torno de uma ideia do sagrado enquanto experiência do mundo e da sua percepção introspectiva. Neste âmbito, o conceito de numinoso, derivado do latim “numen” e atribuído ao filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto, é central na pesquisa que Valsecchi desenvolve. A meditação e as caminhadas em diversos locais que compreendem uma relação de proximidade e de fusão com a natureza, mesmo quando esta é hoje uma memória primordial que ultrapassa a experiência do presente, são práticas da artista estribadas neste conceito. Esta ideia de numinoso coloca-nos entre o mistério e a possibilidade da sua revelação interior, e assenta numa reflexão e num estado de vigília interna que exalta uma austeridade e um estado de ascese que transita entre uma auscultação fenomenológica do mundo e a sua inexprimível plasticidade dada à palavra. As obras de Valsecchi procuram essa possibilidade de ligação, fluída, mas fragmentada. Esta ideia de fragmentação está ligada a um sentimento, uma intuição, que se divide entre a parcialidade da experiência do sujeito e a condição universal e infinita dessa experiência.
Uma das obras expostas, parte de um projecto site specific, foi trabalhada no período da sua primeira residência na RAMA, em 2021, intitula-se “La Nostalgie du Paradis”, e é exemplar do processo de reflexão e materialização da sua prática artística. Diferentes formas em papel, recortadas à mão foram colocadas sobre pedras na orla costeira da zona oeste de Portugal, local de residência da artista. A imagem da superfície do papel une a textura das pedras, sobre as quais os papéis foram moldados, e a infinitude do céu, dois elementos pintados a aguarela que, sobrepondo-se, criam uma ideia de espelhamento e reflexo, mas também uma sugestão de transparência sugerindo a união da terra e do céu2. De certo modo, a assunção desta reunião pode convocar, entre outros, o mito da criação do Olimpo entre Urano e Gaia, entre o Céu e a Terra. Esta narrativa inscrita na antiguidade clássica na Teogonia de Hesíodo, primeiro poeta oral grego, sugere também um sentimento nostálgico sobre o mistério da totalidade primordial do universo. Esta obra coloca-nos perante a tensão poética do seu trabalho na experiência do lugar e na sua transição para a materialidade da obra onde concorrem de um modo quase contraditório, a metodologia da execução e a liberdade formal da mancha cromática. Esta duplicidade está plasmada na prática do desenho, que se desenvolve no painel central da exposição, nas páginas do livro de artista3, nos desenhos de paisagens orgânicas executados com uma solvência de sangue menstrual da artista, união do seu corpo com a terra na sua representação, fendida, como um ventre originário. Mas ainda outros desenhos, quase analíticos e abstractos que registam os itinerários das suas caminhadas, entre a memória do percurso do corpo e, pela transparência do suporte, este mesmo percurso no mapeamento de uma ferramenta digital, o Google maps. Este mapeamento e sua transitoriedade visual, por sobreposição, derivam ainda em duas esculturas em vidro, um processo mais conceptual, no sentido de corporalizar o que é orgânico em ecrã, que se desdobra em si mesmo, como uma alusão ao numinoso, dado a uma contemplação visual concentrada e a limite, invisível enquanto registo da sua totalidade. E o uso de uma outra ferramenta, autoportante, o smartphone, num registo de vídeos de muito curta duração, onde a artista caminha e nos dá a ver fragmentos, passadas, caminhos que só a sua experiência conhece e onde nos reencontramos, como outros, noutros caminhos.
1. @instagram helena.valsecchi
2. Sobre as referências a esta obra no contexto da pesquisa da artista , por favor ver https://elenavalsecchi.com/la-nostalgie-du-paradis/
3. Imagem da capa do livro de artista: página do livro das horas de Bonne de Luxembrourg (cerca de 1348-1349) da autoria Jean Le Noir)